Em junho de 2020 a Sociedade Brasileira de Pediatria publicou o documento científico intitulado “Esclerodermia localizada e sistêmica”, abordando as características mais importantes dessas doenças.
Vamos abordar aqui os pontos principais da publicação.
Esclerodermia
Definições:
- A esclerodermia é caracterizada pela inflamação crônica da pele e do subcutâneo levando à fibrose desses compartimentos, além do potencial acometimento de microvasculatura levando à dano orgânico (exemplo: rins, pulmão, esôfago);
- Pode estar associada a fatores ambientais como infecções, drogas (ex: cocaína) e trauma.
Esclerodermia localizada (EL):
- Forma mais comum na infância;
- Pode se apresentar de diversas formas: morfeia linear, morfeia circunscrita, morfeia generalizada, morfeia panesclerótica, morfeia mista, morfeia congênita, golpe de sabre e síndrome de Parry-Romberg.
Esclerodermia sistêmica (ES):
- Pior prognóstico;
- Envolvimento multissistêmico;
- Forma limitada: espessamento cutâneo somente distal nos membros;
- Forma difusa: espessamento cutâneo proximal nos membros.
Epidemiologia
Esclerodermia localizada:
- Incidência de 3-4 casos por milhão de crianças;
- Média de idade do início: 7 anos;
- Mais prevalente no sexo feminino (2,4:1) e em caucasianos.
Esclerodermia sistêmica:
- Incidência de 0,27-1 por milhão de crianças;
- Média de idade 8-11 anos;
- Em crianças abaixo de 8 anos: mesma incidência em ambos sexos. Acima de 8 anos, mais comum no sexo feminino;
- Sem predominância racial.
Manifestações clínicas na esclerodermia localizada
Esclerodermia linear:
- Forma mais comum;
- Faixas de pele endurecida em geral acometendo um membro;
- Pode levar à limitação do crescimento do membro e limitação de movimento.
Golpe de sabre ou síndrome de Parry-Romberg (hemiatrofia facial):
- Associadas com alterações neurológicas (convulsão, cefaleia, calcificações intracranianas) ou oftalmológicas (uveíte, episclerite).
Morfeia circunscrita:
- Forma mais benigna;
- Lesões mais prevalentes em tronco ou justa-articulares.
Morfeia generalizada:
- Quatro ou mais placas;
- Podem confluir.
Morfeia pansclerótica:
- Forma grave;
- Acometimento circunferencial, com extensão da pele até o osso.
Morfeia mista:
- Presença concomitante de dois ou mais subtipos.
Morfeia congênita:
- Presente no nascimento;
- Pode se associar à alterações no crescimento (global ou de membros) e desenvolvimento.
Manifestações clínicas na esclerodermia sistêmica
Envolvimento cutâneo:
- Endurecimento da pele, geralmente iniciado nas mãos;
- Esclerodactilia;
- Edema indolor de dedos;
- Fenômeno de Raynaud (70 – 90% dos casos): comumente a primeira manifestação da doença; pode evoluir com úlceras digitais, afinamento dos dedos e auto-amputação das falanges distais;
- Teleangiectasias;
- Calcinose;
- Hipo/hiperpigmentação cutânea;
- Síndrome sicca (síndrome de Sjögren associada);
- É possível haver ES sem acometimento cutâneo.
Envolvimento musculoesquelético:
- Artrite/artralgia;
- Miopatia inflamatória proximal.
Envolvimento do trato gastrointestinal:
- Esofagopatia;
- Diarreia crônica.
Envolvimento pulmonar:
- Comum na ES juvenil
- Alta morbimortalidade associada
- Pneumopatia intersticial (50% dos casos): padrão mais comum é a pneumopatia intersticial não específica (PINE, ou NSIP); mais comum na forma difusa. Surge geralmente no início da doença;
- Hipertensão pulmonar (até 10% dos casos): mais comum na forma limitada; manifestação mais tardia;
Envolvimento renal:
- Raro na população pediátrica;
- Crise renal esclerodérmica.
Envolvimento neurológico (raro):
- Neuralgia do trigêmeo;
- Neuropatias periféricas.
Envolvimento cardíaco:
- Cardiomiopatia;
- Insuficiência cardíaca;
- Derrame pericárdico;
- Fibrose cardíaca;
- Arritmias;
- Cor pulmonale.
Exames complementares
Acometimento pulmonar:
- RX tórax: baixa sensibilidade e especificidade para identificação das manifestações;
- Espirometria: pode mostrar padrão restritivo; redução da capacidade vital forçada (CVF) e da difusão de monóxido de carbono (DLCO);
- TC tórax: exame de escolha para avaliação do parênquima pulmonar. A pneumopatia intersticial pode se manifestar com vidro fosco bilateral e alterações fibróticas como bronquiectasias, faveolamento e reticulação;
- Lavado broncoalveolar: pode ser utilizado para avaliar diagnósticos diferenciais como infecções respiratórias;
- Biópsia pulmonar: pouco indicada na prática, mas pode ser útil em quadros duvidosos e sem diagnóstico.
Acometimento do trato gastrointestinal:
- Esofagopatia;
- Cintilografia de esôfago;
- Endoscopia;
- Manometria esofagiana;
- pHmetria.
Acometimento intestinal:
- Cintilografia do cólon;
- RM abdominal.
Acometimento cardíaco
- Eletrocardiograma;
- Ecocardiograma: velocidade de regurgitação tricúspide > 2,5m/s sugere hipertensão pulmonar e indica a realização de cateterismo cardíaco direito;
- RM cardíaca.
Laboratório
FAN pode ser positivo. Presença de autoanticorpos relacionados à ES:
- Anti-centrômero
- Anti-Scl70
- Anti-PmScl]
- Anti-RNA polimerase III
- Anti-fibrilarina
Outros:
Capilaroscopia periungueal. Podem ser vistas diversas alterações no paciente com ES, tais quais:
- Deleção de capilares;
- Presença de megacapilares;
- Alteração da arquitetura capilar;
- Capilares tortuosos e disformes.
Leia também: A utilidade dos autoanticorpos na prática da reumatologia pediátrica
Diagnóstico de esclerodermia
O diagnóstico da forma localizada é clínico baseado no padrão e distribuição das lesões. A biópsia de pele pode ser útil para confirmação diagnóstica.
O diagnóstico de esclerose sistêmica é baseado principalmente nas características clínicas associados aos achados em exames complementares
Critérios classificatórios provisórios foram propostos em 2007:
Critério maior: enrijecimento cutâneo, perda do pregueamento da pele e/ou esclerose cutânea proximal.
Critérios menores:
- Cutâneo: esclerodactilia;
- Vascular: fenômeno de Raynaud, alterações à capilaroscopia periungueal, úlceras de polpas digitais;
- Trato gastrintestinal: disfagia, refluxo gastroesofágico;
- Coração: arritmias, insuficiência cardíaca;
- Respiratório: fibrose pulmonar (em imagem), hipertensão arterial pulmonar, espirometria com redução da DLCO;
- Neurológico: neuropatia periférica, síndrome do túnel do carpo;
- Músculo esquelético: miosite, artrite, atrito tendíneo;
- Sorológico: FAN positivo, autoanticorpos (anticentrômero, anti-Scl70, anti-PmScl, anti-RNA polimerase III e/ou antifibrilarina).
A presença de um critério maior e pelo menos dois menores classifica a paciente como ES.
Diagnósticos diferenciais
Esclerodermia localizada:
- Picadas de inseto;
- Atrofodermia de Pasini e Pierini;
- Granuloma anular;
- Líquen escleroso e atrófico;
- Líquen simples crônico;
- Eczema atópico;
- Nevus;
- Lesões pós-inflamatórias;
- Lipoatrofia.
Esclerose sistêmica:
- Doença enxerto versus hospedeiro;
- Fasciíte eosinofílica;
- Fenilcetonúria;
- Escleredema;
- Quiroartropatia diabética;
- Progeria;
- Porfiria cutânea tarda;
- Síndromes de sobreposição;
- Doença mista do tecido conjuntivo;
- Infecção pelo HTLV;
- Fibrose sistêmica nefrogênica;
- Doença relacionada ao IgG4;
- Exposição ambiental (ocupacional, silicone, drogas).
Tratamento
Esclerodermia localizada
Terapias tópicas:
- Hidratantes;
- Corticoides tópicos;
- Calcipotriol;
- Imiquimode;
- Tacrolimus;
- Fototerapia;
Terapias sistêmicas (para casos mais graves):
- Corticoide sistêmico;
- Metotrexato;
- Micofenolato de mofetila;
- Fisioterapia motora;
Esclerose sistêmica: Geralmente imunossupressão sistêmica é necessária:
- Corticoides sistêmicos;
- Metotrexato;
- Ciclosporina;
- Ciclofosfamida.
Em casos graves ou refratários pode-se considerar tocilizumabe, abatacepte ou rituximabe.
Tratamento de manifestações órgão-específicas
- Aquecimento e vasodilatadores para fenômeno de Raynaud ou úlceras digitais (bloqueadores de canais de cálcio, inibidores de fosfodiesterase-5, análogos da prostaciclina, antagonistas da endotelina);
- Inibidores de bomba de próton e procinéticos para doença do refluxo gastroesofágico;
- Inibidores da enzima conversora de angiotensina (ECA) são utilizados no acometimento renal;
- Hipertensão pulmonar pode ser tratada também com inibidores de fosfodiesterase-5, antagonistas da endotelina e análogos da prostaciclina;
- O antifibrótico Nintedanibe foi aprovado para fibrose pulmonar da ES em adultos, mas ainda não há estudos na população pediátrica;
- Transplante autólogo de células tronco pode ser uma alternativa para casos refratários.
Prognóstico
Esclerodermia localizada:
- Em geral há progressão muito lenta das lesões;
- A identificação e tratamento precoces levam a um prognóstico melhor;
- A EL em crianças tem prognóstico pior do que em adultos;
- Há risco aumentado de neoplasias cutâneas nos pacientes com EL.
Esclerodermia sistêmica:
- O prognóstico depende de quais órgãos são envolvidos no curso da doença;
- Uma pequena parcela dos pacientes com ES tem evolução rápida dos sintomas com acometimento multissistêmico e alta morbimortalidade;
- A maioria dos pacientes, no entanto, tem um curso indolente com menor mortalidade;
- A ES juvenil tem melhor prognóstico que a ES em adultos;
- Maior morbimortalidade está relacionada com acometimento cardíaco e pulmonar;
- O diagnóstico e tratamento precoces reduzem a morbimortalidade da doença.
Referências bibliográficas:
- Sociedade Brasileira de Pediatria, documento científico: Esclerodermia localizada e sistêmica. 2020
- Zulian F, Woo P, Athreya BH, et al. The Pediatric Rheumatology European Society/American College of Rheumatology/European League against Rheumatism provisional classification criteria for juvenile systemic sclerosis. Arthritis Rheum. 2007;57(2):203-212. doi:10.1002/art.22551
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