Litíase biliar: pedra na vesícula é um passe-livre para a colecistectomia? - 222
Entre os portadores de litíase biliar, somente um em cada quatro se tornará sintomático ao longo da vida, a uma taxa anual de 2%. A maioria dos indivíduos, sendo assintomática, desconhece ser portadora dessa condição. Contudo, com a solicitação corriqueira dos exames de imagem, a litíase biliar tem se tornado um achado incidental cada vez mais comum. Nesse cenário, o primeiro passo, antes de indicar de forma intempestiva a colecistectomia, deve-se refinar a entrevista médica, com o intuito de destrinchar se há ou não sintomatologia atribuível à colecistolitíase.
Neste quesito, devemos nos lembrar que a dor abdominal, carro-chefe da colecistolitíase sintomática, é uma queixa muito comum e inespecífica, envolvendo condições diversas, entre as quais a doença ulcerosa péptica, a dispepsia funcional, a síndrome do intestino irritável, a intolerância à lactose e as parasitoses intestinais.
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A importância da reflexão quanto aos diagnósticos diferenciais é ilustrada pelo dado inusitado de que a cada 3 pacientes submetidos à colecistectomia, 1 permanece sintomático no pós-operatório. Logo, a atribuição de relação de causalidade entre dor abdominal e litíase biliar não deve ser automática.
Fisiopatologia e semiologia da cólica biliar
Os cálculos biliares, decorrentes da precipitação da bile supersaturada, são prioritariamente compostos por cristais mono-hidratos de colesterol, sendo os pigmentos enegrecidos de bilirrubinato de cálcio responsáveis por apenas 20% dos casos.
Os principais fatores de risco para a colecistolitíase incluem a idade, sexo feminino, multiparidade, hormonioterapia, exposição à contraceptivos orais, hereditariedade, dieta hipercalórica, rápidos ciclos de mudanças do peso e síndrome metabólica, incluindo obesidade, diabetes mellitus e dislipidemia.
A cólica biliar tem como substrato a contração pós-prandial da vesícula biliar sob o estímulo da colecistocinina em simultaneidade à impactação transitória do infundíbulo da vesícula biliar ou ducto cístico por um cálculo. Logo, espera-se uma dor episódica de padrão visceral verdadeiro, de moderada a forte intensidade intensidade, com progressão gradual dos sintomas até alcançar o platô a partir de 30 minutos, tipicamente localizada em hipocôndrio direito ou epigástrio e eventualmente com irradiação para região subescapular ipsilateral, por vezes associada a náuseas ou vômitos.
Prognóstico da colecistolitíase
Os portadores de colecistolitíase sintomática não desenvolvem complicações em aproximadamente 85% dos casos.
As complicações, embora raras, são potencialmente graves, e entre elas elencamos, com suas respectivas taxas de incidência: colecistite aguda litiásica (0,3 a 0,4%/ano), pancreatite aguda biliar (0,04 a 1,5%/ano), coledocolitíase (0,1 a 0,4%/ano) e colangite aguda (0,3 a 1,6%/ano).
Outras complicações, como a síndrome de Mirizzi (compressão extrínseca da via biliar ou formação de fístulas pela progressão transmural do processo inflamatório a partir da vesícula biliar) e os seus desdobramentos, a exemplo do íleo biliar e síndrome de Bouveret (obstrução da via de saída gástrica por cálculo) são mais raras.
Os médicos devem se manter vigilantes e os pacientes educados quanto ao surgimento dos principais sinais de alarme: dor abdominal persistente por mais de 6 horas, náuseas e vômitos refratários, febre, calafrios, hipotensão, icterícia, colúria, acolia fecal e sinal de Murphy.
Modalidades diagnósticas para a colecistolitíase e suas complicações
O principal alicerce para o diagnóstico da colecistolitíase é a ultrassonografia do andar superior do abdome, com alta especificidade (> 98%) e sensibilidade (> 95%), somadas ao baixo custo e segurança.
Na suspeita de colecistite aguda, a modalidade com maior sensibilidade (97%) é a cintilografia hepatobiliar com ácido iminodiacético (HIDA), a partir do achado de ausência de visibilização da vesícula biliar por obstrução do ducto cístico. Dada a menor disponibilidade e viabilidade do diagnóstico por meio de outras modalidades, fica reservada para casos duvidosos, em virtude do seu excelente valor preditivo negativo.
A coledocolitíase pode ser avaliada com alta acurácia pela colangiorressonância (sensibilidade de 97% e especificidade de 98%) e ultrassonografia endoscópica.
A tomografia de abdome encontra a sua principal indicação na suspeita de pancreatite aguda (PA) biliar.
Reservamos a colangiografia retrógrada endoscópica (CPRE) para a finalidade terapêutica em casos de alta suspeição clínica ou documentação prévia da coledocolitíase pelos métodos anteriormente citados. Trata-se de procedimento invasivo, com risco entre 4 e 10% para complicações graves, como hemorragia, pancreatite aguda, colangite aguda ou perfuração.
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Tratamento da colecistolitíase assintomática
A colecistolitíase assintomática, na maioria dos casos, deve ser tratada de forma conservadora, com a educação sobre os sinais e sintomas atribuíveis à doença. Todavia, em alguns cenários, discute-se a indicação da colecistectomia a despeito da ausência de sintomas:
- Cálculos de vesícula biliar maiores do que 3 centímetros, pelo maior potencial de desenvolvimento de carcinoma da vesícula biliar (RR 9,2). Os cálculos biliares crescem, em média, 2 mm/ano, de forma que os grandes cálculos sinalizam um processo inflamatório crônico da vesícula biliar, potencialmente implicado na gênese da malignidade.
- Colecistolitíase concomitante aos pólipos da vesícula biliar, pelo maior risco presumido de evolução para carcinoma de vesícula biliar.
- Colecistectomia profilática durante a cirurgia bariátrica. Tanto a obesidade quanto a rápida perda ponderal são fatores de risco para o desenvolvimento de litíase biliar. No pré-operatório da cirurgia bariátrica, a prevalência de colecistolitíase pode atingir 21%, número que pode alcançar até 38% no pós-operatório. Ressalta-se que, na sequência de cirurgias bariátricas disabsortivas, o duodeno torna-se inacessível à endoscopia. Portanto, diante de complicação com coledocolitíase, o CPRE deixa de ser opção terapêutica, restando intervenções mais invasivas, como as percutâneas trans-hepáticas ou cirúrgicas com coledocotomia.
- Colecistolitíase na vigência de anemias hemolíticas crônicas, com a anemia falciforme, por acometer pacientes jovens, apresenta alto potencial de desenvolvimento de sintomas e complicações ao longo da vida, além da confusão diagnóstica diante de crises álgicas recorrentes.
- Vesícula em porcelana, pelo alto risco de câncer da vesícula biliar.
A terapia de dissolução oral dos cálculos, com o emprego de ácido ursodeoxicólico ou quenodesoxicólico, em decorrência de sua baixa eficácia e alta taxa de recorrência, não encontram indicação rotineira na prática clínica.
Tratamento da colecistolitíase sintomática
A colecistolitíase sintomática deve ser manejada cirurgicamente, por meio da colecistectomia precoce, preferencialmente pela via laparoscópica, por se associar a tempo de internação e convalescência mais breves (-3 e -22 dias, respectivamente).
Até a realização da cirurgia, a abordagem sintomática pode ser realizada com antiespasmódicos, anti-inflamatórios não esteroidais e, se necessário, opioides. A indicação cirúrgica, entretanto, deve ser reservada aos pacientes com maior potencial de resolução sintomática no período pós-operatório.
Os preditores de boa resposta à cirurgia, definidos em coortes prospectivas, incluem: dor episódica e de baixa frequência (≤ um evento/mês); intervalo entre a instalação da dor e a realização da colecistectomia ≤ um ano; dor com duração entre 30 min e 24 horas; e sintomatologia concentrada ao final da tarde ou à noite.
Em algumas situações, a despeito da existência de indicação da colecistectomia, preocupações adicionais surgem quanto às eventuais complicações do procedimento, entre as quais damos ênfase aos idosos frágeis, gestantes e hepatopatas crônicos.
Os idosos com múltiplas comorbidades apresentam taxa aumentada de conversão à cirurgia aberta, tempo operatório prolongado e complicações pós-operatórias mais frequentes. Apesar dessas considerações, um terço deles apresenta recorrência sintomática em 6 meses, entre os quais 40% demandam cirurgias de urgência, associadas ao incremento da morbimortalidade.
As gestantes geralmente são manejadas de forma conservadora, embora a colecistectomia possa ser realizada nos casos mais sintomáticos, com dor intratável ou que desenvolvam complicações. O risco de recorrência sintomática durante a gestação é alto, podendo atingir 69%, por vezes associada a complicações ou internações prolongadas, mas sem incremento aparente da mortalidade fetal.
Os pacientes portadores de doença hepática crônica avançada têm prevalência de colecistolitíase superior à da população geral. A circulação colateral periportal aumenta os riscos de sangramento. Em geral limita-se a colecistectomia videolaparoscópica para as classes funcionais de Child-Pugh A e B, enquanto para a classe C a tendência é o tratamento definitivo por meio do próprio transplante hepático, dada a grande morbimortalidade de outras modalidades cirúrgicas.
Tratamento das complicações da colecistolitíase
A colecistolitíase sintomática complicada deve ser tratada com a colecistectomia, com o objetivo de profilaxia secundária da recorrência de complicações ameaçadoras à vida.
A coledocolitíase, suspeita na presença de icterícia (bilirrubina total ≥ 4 mg/dL), dilatação na via biliar principal (ducto hepático comum > 6 mm) ou colangite ascendente, geralmente é abordada por meio da CPRE, procedimento em que se realiza a papilotomia e extração dos cálculos. Na sequência do procedimento, preconiza-se a colecistectomia precoce.
A colecistite aguda, caracterizada por dor persistente em hipocôndrio direito, apresenta-se com sinais locais, como a interrupção dolorosa da inspiração à palpação do ponto cístico (sinal de Murphy) ou presença de dor, sensibilidade ou massa em hipocôndrio direito; e sistêmicos, incluindo febre, elevação de proteína C reativa ou leucocitose.
Lembramos que em idosos e diabéticos a sintomatologia pode ser inespecífica, incluindo anorexia, fadiga, náuseas e vômitos, devendo-se manter uma alta suspeição clínica nessas circunstâncias.
O tratamento consiste em antibioticoterapia (ceftriaxona + metronidazol; ciprofloxacino + metronidazol; ou piperacilina-tazobactam), associada à colecistectomia precoce na primeira semana nos casos leves a moderados. Evita-se o procedimento cirúrgico na janela entre uma e seis semanas, período em que há incremento em três vezes da morbidade cirúrgica. A colecistostomia percutânea é uma alternativa em casos graves, com risco cirúrgico proibitivo, mas carece de literatura robusta.
A PA biliar é presumida na presença de lama ou cálculos biliares à ultrassonografia. Como nas demais etiologias, os critérios diagnósticos incluem a presença de ao menos dois entre os seguintes elementos: (1) dor epigástrica ou em barra no andar superior do abdome, irradiada para o dorso e associada a náuseas e vômitos; (2) aumento de amilase ou lipase acima de três vezes o limite superior da normalidade; e/ou (3) alterações radiográficas, especialmente à tomografia computadorizada de abdome, compatíveis com PA. Em casos de PA leve a moderada, indica-se a colecistectomia na mesma internação. Nos casos de PA grave, habitualmente a colecistectomia é atrasada, sendo realizada a partir de 6 semanas.
Mensagens práticas
- Documentação radiológica de litíase biliar não é suficiente para a indicação de colecistectomia.
- Colecistolitíase assintomática, na maioria dos casos, deve ser abordada de forma conservadora.
- Colecistolitíase sintomática, especialmente na vigência de sintomas típicos, deve ser abordada cirurgicamente, por meio da colecistectomia, com o objetivo principal de resolução sintomática.
- Colecistolitíase sintomática complicada deve ser abordada cirurgicamente, por meio da colecistectomia, com o objetivo principal de profilaxia secundária de complicações ameaçadoras à vida.
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